quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Fases da Vida e da Obra de Jung - Sílvia Rocha

“ Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou.”(C.G. Jung - Memórias, Sonhos e Reflexões – pág.19). Jung começa sua auto-biografia já ensejando sua coerência entre sua vida interna e externa, sua vida e sua obra. Seu mundo interno, sua alma foi tão pesquisada por ele mesmo, que pôde colocar a público o resultado destas experiências a fim de ajudar como médico aos males da alma. Até chegar na confecção de suas próprias idéias, ele fez uma jornada que teve como ponto inicial suas experiências em Zurique, sua amizade com Freud e posterior rompimento até se lançar ao mundo e se tornar reconhecido e respeitado. Uma obra que chega até hoje em posição de vanguarda no pensamento contemporâneo.
Podemos separar em cinco fases a evolução do pensamento de Jung e sua obra:
I Fase – Jung psicanalista - 1900 a 1912
No ano de 1900, Jung se forma em Medicina na Basiléia e decide dedicar à psiquiatria apesar de ter sido convidado a ser assistente de clínica médica. Sua decisão se deu quando se deparou com o prefácio de um tratado de psiquiatria de kraft-ebing quando fora estudar para os exames finais, nele o autor se refere à Psiquiatria como uma ciência com uma peculiariedade: a subjetividade permeando seu desenvolvimento. Em suas palavras, “ lá estava o campo comum da experiência dos dados biológicos e dos dados espirituais, que até então buscara inutilmente. Tratava-se enfim do lugar em que o encontro da natureza e do espírito se torna realidade.” (C.G. Jung - Memórias, Sonhos e Reflexões – pág. 104).
Ocupou então o lugar de segundo assistente no hospital de Burgholzli, em Zurique, onde um dos maiores psiquiatras da época dirigia, Dr. Eugene Bleuler.
Em 1902, passou a primeiro assistente após fazer experiência com associações. Neste ano, ele defende sua tese de doutorado sobre a psicologia e patologia dos fenômenos chamados ocultos. Em 1900, foi publicado a Interpretação dos sonhos de Freud, então Jung se utiliza do que já existia na época – a psicanálise de Freud e a psicologia experimental de Wundt – para a pedido de Bleuler, ver se existia algo de psíquico nas demências precoces. Jung realiza então teste de associação de palavras, medindo o tempo de resposta que é dada a cada palavra. Se houvesse diferença no tempo de resposta, se ela demorasse mais tempo do usual para responder a algum estímulo, isto apontaria a existência de um complexo inconsciente.
A conceituação de complexo foi a primeira contribuição de Jung para a psicologia moderna. Depois em 1906, publica os “Estudos sobre as associações”; em 1907, “A psicologia da demência precoce” e em 1908, “O conteúdo das psicoses”, onde Jung fala dos sintomas psicóticos como sendo repletos de significações da vida psíquica aos quais demandam tratamento. Este conceito também foi compartilhado por Freud, sendo este último livro, um pretexto para a aproximação entre Freud e Jung. Em 1907, se encontraram em Viena e conversaram durante 13 horas. Sendo 25 anos mais velho que Jung, Freud o vê como filho mais velho e príncipe herdeiro da psicanálise, surgindo uma grande amizade e parceria.
Em 1909, Freud e Jung viajam juntos aos Estados Unidos a fim de apresentarem seus trabalhos: Freud com suas cinco conferências à psicanálise e Jung com suas associações verbais. Neste mesmo ano, Jung dá início aos seus estudos sobre mitologia, deixa a clínica psiquiátrica e a universidade, para se dedicar ao consultório.
Em 1909 a 1912, Jung e Freud trabalham juntos em estreita contribuição, quando em 1912, Jung lança o livro “Símbolos da transformação” ocasionando o rompimento entre eles, devido a sua discordância com relação ao conceito de Libido.

II Fase – O Mergulho no inconsciente – 1913 a 1919
“ Foi trabalhando as imagens do meu próprio inconsciente que iniciei meu trajeto pessoal. Esse período durou de 1913 a 1917, depois a onda de fantasias diminuiu.” (C.G. Jung - Memórias, Sonhos e Reflexões – pág. 182)
Após rompimento com Freud, Jung mergulha numa fase de solidão e introversão, onde suas próprias experiências do inconsciente, sonhos, visões e fantasias tornaram seu foco. Decifrar o sentido destas imagens que surgiam a partir deles era matéria prima de suas experiências. Como psiquiatra sabia dos riscos deste mergulho, principalmente sem ter nenhum guia para ajudá-lo e por isto se manteve ancorado na realidade externa, ocupando-se de sua família e da profissão. Ele dizia que para tal tarefa era preciso ter um ego bem estruturado e coeso. Foi através destas imagens que Jung dá início a seu trajeto pessoal.
Em 1916, Jung descreve pela primeira vez o uso da “ imaginação ativa”, da “função transcendente” e emprega pela primeira vez os conceitos de inconsciente pessoal e inconsciente coletivo, anima e animus, si mesmo e individuação, em “A estrutura do inconsciente”, texto mais tarde ampliado para o “eu e o inconsciente”.
Jung se utiliza de uma metodologia simbólica-analógica em que redes de significados são explorados, buscando amplificar e libertar significados. Não existe uma única resposta certa para os símbolos. Um símbolo pode ter significados diferentes de pessoa para pessoa e dependendo do momento em que ele aparece. É uma propriedade da psique aglutinar opostos dentro de um todo maior sistêmico.
Em 1917, escreve “A Psicologia dos processos inconscientes”, mais tarde reelaborado para a Psicologia do Inconsciente.
Em 1918, Jung dá início aos estudos gnósticos e lança o belo poema – “Os sete sermões aos mortos” – rico em metáforas. Seu interesse por estes estudos se deve ao fato dos gnósticos terem encontrado o mundo original do inconsciente confrontando com imagens e conteúdos instintivos.
De 1918 a 1919, Jung presta serviço militar como capitão médico em campos de concentração ingleses. Usa pela primeira vez o conceito de arquétipo ao invés de imagens arcaicas. Neste ano, Jung começou a compreender as mandalas que pintava como a expressão do si mesmo que é circular e não linha reta, a totalidade em ação. Exprimia o centro e os caminhos que conduzem à individuação. A Mandala também corresponde à natureza microscópica da alma.
Vê-se aqui que a separação de Freud, permitiu que Jung desenvolvesse sua própria epistemologia mais calcada na natureza sistêmica e dialética da psique. Jung questionava o paradigma cartesiano-newtoniano utilizado pela psicanálise na busca dos porquês das neuroses e na interpretação freudiana de encerrar significados.
O desentendimento decisivo se deu devido às divergências conceituais em torno da libido. Para Freud, a libido é uma energia puramente sexual, donde se conclui que toda relação do indivíduo com o mundo seria erótica. Para Jung, a libido é a energia psíquica e muito se aproxima da concepção de Schopenhauer, a libido como vontade. Esta energia psíquica é bem ampla tal qual a Física moderna conclui que pode existir inúmeras causas para o mesmo evento. Fato este comprovado, Jung percebia que em muitos casos a sexualidade ocupava um lugar secundário.

III Fase – Tipos Psicológicos e Energia Psíquica – 1920 a 1930
O livro “Tipos Psicológicos” foi escrito motivado pelas diferenças existentes entre as pessoas. É uma obra clínica, cuja importância se deve ao fato da compreensão de que o indíviduo é limitado pela sua maneira de ver o mundo. Ele a vê de acordo com seu tipo psicológico. Do que ele se distinguia de Freud? E Adler? O confronto do indivíduo com o mundo varia de acordo com seu tipo.
Esta variedade porém poderia ser compensada pela Unidade, semelhante ao Taoísmo. E foi através de um texto taoísta enviado por Richard Wilhelm, neste momento sincrônico que nasceu uma parceria com este autor, e em 1929 lançaram “ O segredo da flor de ouro” . A idéia de self atingiu seu ponto central e fez com que Jung voltasse ao mundo, realizando conferências.
Neste período, Jung realizou também algumas viagens à Africa, primeiro à África do norte e mais tarde ao Quênia e Uganda, também foi ao Arizona, Estados Unidos, visitando os Pueblos, povo indígena do Novo México ampliando sua visão para aspectos culturais do homem moderno.
Ele também foi atento às questões das mulheres na Europa. Percebeu que o feminino não ganhara espaço no mundo patriarcal de Freud e que o princípio feminino exercia um papel fundamental na alquimia, nem menos nem mais que o papel masculino.
Outra obra importante neste período foi “O Eu e o Inconsciente”, um livro que foi se ampliando ao longo dos anos e é resultado dos ensaios da fase anterior. Outras obras também se compõem da reunião de ensaios como “Ab-reação, Sonhos e Transferência”, “Desenvolvimento da Personalidade”, etc.

IV Fase – Inconsciente Coletivo, Arquétipos, Processo de Individuação – 1930 a 1945
Neste período, Jung consolida sua teoria sobre o inconsciente coletivo. Enquanto o inconsciente pessoal vem a ser composto por conteúdos decorrentes de experiências pessoais, o inconsciente coletivo reúne experiências comuns a toda a humanidade, compreendendo camadas mais profundas do inconsciente. Estuda os principais arquétipos e aprofunda a questão da individuação.
Faz uma viagem para a Índia e analisa psicologicamente alguns textos orientais. Interessa-se mais por questões espirituais. Com a Segunda guerra também se interessa e escreve sobre questões políticas e religiosas. Também se dedica a problemas educacionais e práticas psicológicas. É o período onde diversifica mais seu foco de interesse.
Estudando a alquimia, percebeu que o inconsciente é um processo. Ele se transforma e causa transformações. O ego em contato com conteúdos inconscientes desencadeia uma metamorfose da psique. Para os indivíduos, os sonhos e as fantasias permitem este processo e já para o coletivo os sistemas religiosos apresentam símbolos que se transformam. Através da simbologia alquímica e das evoluções individuais e coletivas, Jung chegou ao conceito básico de processo de individuação, ponto central da Psicologia Analítica.
O grande livro da época é o “ Psicologia e Alquimia”, de 1944, tornando-se seu maior legado.
Jung viajado, torna-se mundialmente reconhecido e honrado nas principais universidades americanas, européias e asiáticas.

V Fase – Jung alquímico – 1945 a 1961
Jung maduro, apresenta referencial teórico da alquimia, onde os pólos da psique se tornam fundamentos da Psicologia Analítica. A psiquê se estrutura pelos mitos e se transforma pela alquimia.
Mantém-se ativo e criativo escrevendo várias obras: “Aion” onde desenvolve o tema cristão, tendo Cristo como imagem do self, arquétipo de Deus (imago Dei), “Mysterium Conjuctionis” sobre alquimia, “O homem e seus símbolos” em parceria com seus seguidores, um livro para leigos, “Memórias, sonhos e reflexões”, sua auto-biografia em colaboração de Aniela Jaffé, e ainda “Resposta a Jó”, “Sincronicidade”, “A Natureza da psique”, “Aspectos do drama contemporâneo” sobre assuntos psicológicos, políticos e culturais e obras no campo da religião e no da parapsicologia.
Neste período Jung quase não escreveu sobre psiquiatria e se dedicou os últimos anos de sua vida a questões espirituais e à alquimia.

Jung cientista, conseguiu tratar dos assuntos mais sutis da alma humana de uma forma experimental com todo rigor metodológico científico tornando sua obra original, criativa e séria. Desta forma também conseguiu unir dois polos de sua própria personalidade, a que ele chamou de personalidade número 1 e personalidade número 2, o empírico e o espiritual respectivamente.
Ele se abriu ao seu próprio inconsciente e foi guiado pelos sonhos. Bebeu da história e de estudos antigos para fundamentar sua obra. Jung realizou sua obra e realizou-se através dela, fazendo uma integração entre quem ele era e o que fazia. Sua vida e sua obra se deram em decorrência de seu processo de individuação, uma jornada rumo à totalidade. Em suas palavras: “Minhas obras podem ser consideradas como estações de minha vida; constituem a expressão mesma do meu desenvolvimentos interior, pois consagra-se aos conteúdos do inconsciente forma o homem e determina a sua evolução, sua metamorfose. Minha vida é minha ação, meu trabalho consagrado ao espírito é minha vida; seria impossível separar um do outro. (...) O que escrevi transbordou de minha interioridade. ” (C.G. Jung - Memórias, Sonhos e Reflexões – pág.194)

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