terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O Saber e a Pose

Você acredita na dança da chuva? Em 1998, o Estado de Roraima teve quase um quarto de seu território queimado por causa de uma seca que já durava três meses. Depois de frustradas tentativas de apagar o fogo, ogoverno decidiu recorrer à crendice popular. Dois índios caiapós Kuerit e Mantii [Kukrit e Manti-í] foram levados do Mato Grosso até Boa Vista para executar a dança da chuva. As passagem e o hotel foram pagos pela Funai. Os pajés dançaram durante quarenta minutos, às margens do rio Curupira, pedindo chuva ao espírito de um antepassado. Para surpresa geral, a chuva veio e apagou a maior parte dos focos de incêndio.
O saber e a pose
Os índios são no Brasil de hoje um dos últimos redutos
de uma espiritualidade autêntica
OLAVO DE CARVALHO
Escrevendo na Folha, uma cientista social (ah, como é
rico em cientistas sociais este Brasil!) explica-nos
que a eficácia dos ritos indígenas para produzir chuva
é um resultado do consenso social. Não é maravilhoso?
Pressionadas pela opinião pública, as nuvens fazem
pipi de medo. Já a "Veja'', com seu característico ar
de menininho primeiro da classe, alerta contra o
ressurgimento das crendices, como se fosse muito mais
racional e científico acreditar na "Veja'' do que nos
pajés de Roraima.
Da minha parte, não me lembro de jamais ter acreditado
piamente numa única linha dessa revista. Não vai nisso
nenhuma ofensa aos coleguinhas: um jornalismo saudável
não dá por pressuposta a sua própria infalibilidade,
sobretudo em assuntos tão estranhos à mente
jornalística como o é a arte de fazer chover.
Havendo motivos de sobra para duvidar de que citadinos
incapazes de extrair um pingo d'água de um coco seco
tenham grande autoridade para opinar em questões de
pluviosidade ritual, parece-me que as classes falantes
têm oferecido ao público, no que dizem da chuva que
salvou Roraima, um triste espetáculo de ignorância
presunçosa.
Enquanto os pajés davam com modéstia exemplar um show
de eficiência e poder, os ditos civilizados procuravam
esconder sua vergonhosa impotência por trás de
pedantismos verbais, recriminações mútuas, acusações
ao "governo ladro" que não produz chuva e, "last but
not least", despeitadíssimas tentativas de diminuir e
aviltar o grande feito dos dois admiráveis sacerdotes.
Mas que mais poderiam fazer? Que entende de diálogos
com o céu essa gente imersa na "completa
terrestrialidade e mundanização do pensamento''
preconizada por Antônio Gramsci?
A "Veja'', por exemplo, está tão longe do assunto que,
quando fala de "renascimento da fé'', não entende por
essa expressão nada mais que um fenômeno de marketing.
Crendice, no sentido rigoroso do termo, seria
acreditar que mentalidades lacradas na atualidade
jornalística mais compressiva, incapazes de
desligar-se mesmo hipoteticamente dos preconceitos
contemporâneos, pudessem nos ensinar alguma coisa
sobre o supratemporal e o eterno.
Para quem enxerga alguma coisa nesses domínios, há uma
diferença abissal entre o mero "sentimento
religioso'', fato imanente à psique humana, e o ato
espiritual propriamente dito, cujo alcance se prolonga
para muito além dos limites da subjetividade
individual ou coletiva e chega a tocar um outro plano
de existência, que nem por invisível é menos real e
objetivo do que este mundo nosso de pedra e sangue.
Uma das mais notórias ilustrações dessa distinção é,
precisamente, a diferença entre a pura força
auto-hipnótica da sugestão coletiva e o efeito físico
que certas preces e ritos determinam sobre a natureza
em torno, imune, por definição, às flutuações da
opinião pública.
Em última instância, como já ensinava o episódio de
Moisés ante os magos do Egito, é o domínio sobre o
mundo físico que atesta a diferença entre o carisma em
sentido estrito _dom de Deus e poder espiritual
autêntico_ e o "carisma'' em sentido sociológico,
redutivo e caricatural, vulgar atração mútua entre as
massas e seu ídolo.
Mas essa diferença é, por definição, invisível à
mentalidade radicalmente mundanizada das classes
falantes, um clero leigo empenhado em tampar o céu
para que, na escuridão resultante, sua potência
iluminista de meio watt pareça um verdadeiro sol.
Eis por que essas pessoas chegam ao supremo ridículo
de atribuir o efeito dos ritos sobre a natureza ao
funcionamento imanente da psique e da sociedade, como
se árvores e nuvens, bichos e galáxias fossem regidos
pelas leis da nossa vã sociologia. Explicar o objeto
pelo sujeito, o transcendente pelo imanente é o mesmo
que conferir às leis da eletrotelefonia o poder de
determinar o que se diz numa conversa telefônica.
Mas, na ânsia de negar, o orgulho moderno não hesita
em afundar no ilogismo mais estúpido. O apego à
modernidade científica torna-se, então, uma crendice
supersticiosa que faz um sujeito regredir à noite dos
tempos e pensar como um neandertalóide.
Não, caros intelectuais, vocês não têm nenhuma
explicação válida para a chuva produzida em Roraima
pelas preces dos dois pajés, e o ar de superioridade
fingida com que falam do que não entendem só mostra
que sua ciência é bem menos confiável que a deles.
Certas tribos brasileiras conservam uma intensidade de
vida religiosa e o domínio de conhecimentos
espirituais que de há muito se tornaram, para a
intelectualidade citadina, misteriosos e
incompreensíveis. Os índios não fazem mistério algum
em torno desses conhecimentos, assim como os santos da
igreja, os gurus vedantinos, os grandes mestres do
budismo. É a malícia temerosa do observador que torna
obscuro e ameaçador o luminoso e evidente e que, não
suportando a luz, busca reduzi-la à refração das suas
próprias trevas.
Malgrado o empobrecimento de suas culturas, os índios
são no Brasil de hoje um dos últimos redutos de uma
espiritualidade autêntica, feita de um conhecimento
que é objetividade, simplicidade e poder; nada tem a
ver com o misto de sentimentalismo e exaltação
ideológica apresentado como a única religião possível
por uma pseudociência cega e pretensiosa, por todo um
cortejo desprezível de padrecos e acadêmicos incapazes
de enxergar além das paredes do poço gnosiológico em
que se enfurnam.
Se os dois pajés fizeram o que a gente da cidade não
pôde fazer, o mais elementar bom senso aconselharia
admitir a hipótese de que sabem algo que ela não sabe.
Se ela exclui essa hipótese "in limine" e ainda fala
deles com despeito, isso, além de constituir uma
ingratidão para com benfeitores _um dos "cinco pecados
que bradam aos céus'', segundo a Bíblia_, é um vexame
intelectual que ilustra de maneira especialmente
eloquente a distância invencível que existe entre o
saber e a pose.
Olavo de Carvalho, 50, jornalista e escritor, é autor
de "O Jardim das Aflições: Ensaio sobre o Materialismo
e a Religião Civil'' e de "O Imbecil Coletivo:
Atualidades Inculturais Brasileiras''

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