quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O diagnóstico de Emergênica Espiritual - por S. e C. Grof

O diagnóstico da emergência espiritual

Duas perguntas importantes e freqüentes são: como alguém pode diagnosticar uma emergência espiritual e como é possível diferenciar a crise de transformação da emergência espiritual da doença mental. Para questionar isso seriamente, um profissional de doença mental tem que aceitar os fatos de que a espiritualidade é uma dimensão legítima da existência e de que seu despertar e desenvolvimento são para se desejar.

Os critérios para distinguir entre crise espiritual e emergência espiritual estão resumidos na tabela 1. Já que não há fronteiras bem delimitadas entre as duas condições, esses critérios têm que ser considerados como meras diretrizes gerais úteis. Os primeiros critérios importantes são a intensidade e a profundidade do processo, sua fluidez e o grau em que a pessoa envolvida pode atuar no dia-a-dia.

É igualmente importante a postura com relação ao que está acontecendo — se o processo é visto como excitante e valioso ou assustador e irresistível. E finalmente, a habilidade de manipular o relacionamento com o resto da sociedade é de importância primordial. O grau de discriminação com relação à pessoa que alguém escolheu para falar sobre as experiências e a linguagem utilizada podem ser um fator decisivo para determinar se a pessoa será ou não hospitalizada.

Quando se decide que a pessoa transcendeu os limites da emergência espiritual e está enfrentando uma crise, as considerações diagnosticas vêm a seguir. Resumimos novamente na forma de uma tabela (veja tabela 2) os principais critérios para diferenciar as emergências espirituais das doenças estritamente médicas e das chamadas doenças mentais.

A primeira tarefa para diagnosticar é excluir qualquer condição médica detectável por técnicas clínicas e laboratoriais existentes que poderiam ser responsáveis pelas manifestações perceptivas, emocionais e outras envolvidas: condições como encefalite, meningite ou outras doenças infecciosas, arterio-esclerose cerebral, tumor temporal, uremia e outras doenças que sabemos que alteram a consciência. Os sintomas psicológicos dessas psicoses orgânicas são claramente distinguíveis das psicoses funcionais por meio de exames psiquiátricos e testes psicológicos. Os critérios para fazer essas distinções estão demonstrados na primeira metade da tabela 2.

Quando os exames e testes apropriados excluírem a possibilidade de o problema com que estamos lidando ser de natureza orgânica, a próxima tarefa é descobrir se o cliente se enquadra na categoria de emergência espiritual — em outras palavras, diferenciar esse estado das psicoses funcionais. Não há nenhum modo de estabelecer critérios absolutamente claros para a diferenciação entre a emergência espiritual e a psicose ou doença mental, já que esses termos por si só carecem de uma validade científica objetiva. Não se deveria confundir as categorias desse tipo com entidades de doenças precisamente definidas como diabetes mellitus ou anemia perniciosa. As psicoses funcionais não são doenças num sentido estritamente médico e não podem ser identificadas com o grau de precisão que é requerido na medicina quando se estabelece um diagnóstico diferencial.

A tarefa de decidir se estamos lidando com uma emergência espiritual num caso particular significa, em termos práticos, que temos de avaliar se o cliente poderia se beneficiar das estratégias descritas neste livro ou deveria ser tratado do modo tradicional. Os critérios para essa decisão estão resumidos na segunda metade da tabela 2. O conteúdo de uma emergência espiritual típica é a combinação de experiências transpessoais, perinatais e biográficas. (...)

Entre os sinais favoráveis estão: a história de ajustamentos psicológicos sexuais e sociais precedendo o episódio, a habilidade de considerar a possibilidade de que o processo pudesse ter origem na psique da própria pessoa, a confiança suficiente para cooperar, e a boa vontade em respeitar as regras básicas do tratamento. Ao contrário, uma longa história de vida de sérias dificuldades psicológicas e de ajustamento sexual e social marginal pode ser vista, em geral, como uma sugestão de cuidado. Do mesmo modo, um conteúdo de experiências confuso e pobremente organizado, a presença dos primeiros sintomas Breuler de esquizofrenia, a forte participação de elementos maníacos, o uso sistemático de projeção e a presença de vozes perseguidoras e de delírios indicam que as abordagens tradicionais deveriam ser preferidas. Fortes tendências destrutivas e autodestrutivas e violações das regras básicas de tratamento são indicadores ainda mais negativos.

Em clientes que se encaixam na categoria da emergência espiritual, tentar usar rótulos psiquiátricos tradicionais faz muito pouco sentido. Porém, já que os profissionais com formação tradicional estão acostumados a pensar nesses termos e, em geral, têm que praticar no contexto do sistema médico estabelecido, o problema de rotular será abordado aqui brevemente.

As escolhas que o American Diagnostic and Statistical Manual oficial (DSM III) dão aos profissionais liberais da saúde mental para descrever pessoas que estão passando por emergências espirituais são claramente insatisfatórias. Elas incluem, de modo geral, reações esquizofrênicas, maníaco-depressivas e paranóicas. A análise cuidadosa das manifestações dos principais tipos de emergência espiritual mostra que elas não se enquadram em nenhuma das categorias oficiais. Já que a psiquiatria tradicional não faz nenhuma distinção entre reações psicóticas e estados místicos, não apenas as crises de abertura espiritual, mas também as experiências transpessoais simples, em geral, recebem um rótulo patológico.


TABELA 1. DIFERENÇAS ENTRE A CRISE E A EMERGÊNCIA ESPIRITUAL

Emergência
- As experiências interiores são fluidas, amenas, de fácil integração.
- Novas "descobertas" espirituais são bem aceitas, ansiadas e desenvolvidas.
- Infusão gradual de idéias e de descobertas na vida.
- Vivências de energias que estão contidas e são facilmente controladas.
- Fácil diferenciação entre as experiências internas e externas e transição de umas para as outras.
- Facilidade em incorporar estados incomuns de consciência na vida diária.
- Mudança lenta e gradual da consciência de si e do mundo.
- Excitação a respeito das experiências interiores quando elas surgem; disposição e habilidade para cooperar com elas.
- Atitude de aceitação para com a mudança.
- Facilidade em renunciar ao controle. Confiança no processo.
- As experiências difíceis são tratadas como oportunidades de mudança.
- As experiências positivas são aceitas como dádivas.
- Não há necessidade freqüente de discutir as experiências.
- Minúcias ao falar sobre o processo (quando, como, com quem).

Crise
- As experiências interiores são dinâmicas, dissonantes e de difícil integração.
- Novas descobertas espirituais podem ser filosoficamente desafiadoras e ameaçadoras.
- Influxo opressivo de experiências e de novas idéias.
- Experiências de tremores, calafrios e de energia destrutiva na vida diária.
- Às vezes é difícil distinguir entre as experiências internas e as externas, ou a ocorrência simultânea de ambas.
- As experiências interiores interrompem e perturbam a vida diária.
- Modificação abrupta e rápida da percepção de si mesmo e do mundo.
- Ambivalência acerca das experiências interiores, mas há disposição e habilidade para colaborar com elas, utilizando um guia.
- Resistência à mudança.
– Necessidade de estar sob controle.
– Desacredita e não gosta do processo.
- As experiências difíceis são dominadoras e freqüentemente malquistas.
- As experiências positivas dificilmente são aceitas, parecem injustas e podem ser dolorosas.
- Necessidade freqüente e urgente de discutir as experiências.
- Confusão ao falar sobre o processo (quando, como, com quem).

TABELA 2

DIFERENCIAÇÃO ENTRE EMERGÊNCIA ESPIRITUAL(1) E DESORDENS PSIQUIÁTRICAS(2)

Características do processo indicando a necessidade de uma abordagem médica para o problema. (2)
Características do processo sugerindo que a estratégia para a emergência espiritual deveria funcionar. (1)

Critérios de Natureza Médica

Exame clínico e testes de laboratório detectam uma doença física que causa mudanças psicológicas. (2)
Exame clínico e testes de laboratório detectam um processo de doença no cérebro que causa mudanças psicológicas (reflexos neurológicos, fluido cérebro-espinhal, raios X, etc). (2)
Testes psicológicos específicos indicam debilitação do cérebro. (2)
Debilitação do intelecto e da memória, consciência nebulosa, problemas com a orientação básica (nome, tempo, espaço). (2)
Confusão, desorganização e funcionamento intelectual deficiente impedem a comunicação e a cooperação. (2)
Resultados negativos de exames clínicos e de testes laboratoriais para uma doença física. (1)
Resultados negativos de exames clínicos e de testes laboratoriais para processos patológicos que afligem o cérebro.(1)
Resultados negativos de testes psicológicos para debilitação orgânica.(1)
Intelecto e memória mudam qualitativamente, mas intactos, conhecimento geralmente claro, boa orientação básica, coordenação sem debilitação séria. (1)
Habilidade para se comunicar e cooperar (envolvimento ocasional profundo no processo interior pode ser um problema). (1)

Critérios de Natureza Psicológica

A história pessoal demonstra sérias dificuldades no relacionamento interpessoal desde a infância, na incapacidade de fazer amigos e de ter relacionamentos sexuais íntimos, no ajustamento social deficiente, geralmente longas histórias de problemas psiquiátricos. (2)

Pré-acontecimento adequado funcionando como evidência pelas habilidades interpessoais, algum sucesso na escola e na carreira, um grupo de amigos e capacidade de ter relacionamentos sexuais; nenhuma história psiquiátrica séria. (1)

Conteúdo do processo mal-organizado e maldefinido, mudanças irrestritas das emoções e do comportamento, desorganização não-específica de qualquer tipo, nenhuma indicação de direção do desenvolvimento, afrouxamento das associações, incoerência.(2)

Retraimentos autistas, agressividade ou comportamento controlado e manipulador impedem que um relacionamento funcione bem e tornam a cooperação impossível. (2)

Incapacidade de ver o processo como algo intrapsíquico, confusão entre as experiências interiores e o mundo exterior, uso excessivo de projeção e culpa, "extravazamento". (2)

Desconfiança básica e percepção do mundo e de todas as pessoas como hostis, delírios de perseguição, alucinações acústicas ("vozes") que dizem coisas desagradáveis. (2)

Violações das regras básicas da terapia ("não 'machucar' a si mesmo ou a alguém mais, não destruir propriedade"), impulsos destrutivos e autodestrutivos (suicida ou autoflagelador) e uma tendência a agir de acordo com eles sem avisar. (2)

Comportamento que põe em risco a saúde e causa sérias preocupações (recusar-se a comer e a beber por períodos prolongados de tempo, negligenciando as regras básicas de higiene). (2)

Seqüências de lembranças biográficas, temas de nascimento e morte, experiências transpessoais, possível descoberta de que o processo é saudável ou de natureza espiritual, mudança e desenvolvimento de temas, progresso freqüente e definível, incidências de sincronicidades verdadeiras (evidentes para os outros). (1)

Habilidade para relatar e cooperar, em geral até mesmo durante episódios de experiências notáveis que ocorrem espontaneamente ou no decorrer de um trabalho psicoterapêutico. (1)

Consciência da natureza intrapsíquica do processo, habilidade satisfatória para distinguir entre o interior e o exterior, reconhecimento do processo, habilidade para mantê-lo internalizado. (1)

Confiança suficiente para aceitar ajuda e cooperar; sensações de perseguição e "vozes" ausentes.(1)

Habilidade para honrar as regras básicas da terapia, ausência de idéias destrutivas ou autodestrutivas e tendência ou habilidade para falar sobre elas e aceitar medidas de precaução. (1)

Boa cooperação com coisas relacionadas com a saúde física, a manutenção básica e as regras de higiene. (1)

Essa situação tem sido criticada apenas por terapeutas e pesquisadores de orientação transpessoal. O crítico mais franco e claro das práticas de diagnósticos atuais com relação aos estados místicos e às emergências espirituais tem sido David Lukoff, um psiquiatra da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Ele enfatiza a necessidade de distinguir claramente os estados místicos das reações psíquicas. Ele sente que a psiquiatria deveria ter, além disso, duas categorias para as condições em que o místico e o psicológico se sobrepõem: os estados místicos com características psicóticas e os estados psicóticos com características místicas.

Nas circunstâncias atuais, o uso de rótulos em diagnósticos obscurece os problemas e impede o potencial de cura do processo. Além desses efeitos prejudiciais psicológica e socialmente estigmatizados, cria-se uma falsa impressão de que a desordem é uma doença identificada com precisão e serve como uma justificativa para os medicamentos supressivos como uma abordagem cientificamente indicada.

Retirado do livro: A tempestuosa busca do Ser; de Stanislav e Christina Grof

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